Uma poesia visual e tátil sobre a supervalorização da imagem na sociedade contemporânea. Sobre o culto à autoimagem e a imposição de padrões de beleza.
Nessa obra nos tornamos parte da poesia, onde nossa auto imagem se transforma em poeira digital, seguindo a direção dos ventos que sopram em nossa pele.
Foi desenvolvida em Madrid, no MediaLab Prado, onde também ficou exposta por três meses durante as comemorações de 10 anos da residência artística Interactivos?.
Atendo ao convite da curadoria, foi exposta durante o Festival de Arte Digital de Teerã – TADAEX, na Mohsen Gallery, importante galeria de arte contemporânea da capital iraniana.
Em 2022, também selecionada pela curadoria, integrou a primeira edição do Festival X, na Alserkal Avenue em Dubai, festival que tem como CEO Martin Honzik (ex CCO do festival Ars Electronica).
Imagine a situação: você está em uma galeria ou museu. À sua volta, várias obras de arte “protegidas” por vidros. E, claro, os vidros refletem. Dependendo de qual lugar você olha, é possível ver a si mesmo naquela moldura. Mas, calma. Não se trata da anedota obsoleta de que a “arte é um reflexo de nós mesmos”. Falo, literalmente, do fenômeno físico do espelhamento. Se por um momento você para de observar as obras e presta atenção nos outros visitantes da exposição, certamente, vai pegar alguém dando uma conferida no cabelo ou na roupa ao ficar diante de um vidro que reflete sua própria imagem. Dá certo desconforto admitir, mas é isso mesmo: é como se a obra de arte não estivesse mais lá. O “eu” naquele “espelho” é tudo que importa.
Este é um exemplo sintomático da nossa selfie society e um exemplo pulsante do estado da arte na contemporaneidade. Na instalação “Freeing images in dust” (“Fragmentos”) o artista Rafael Ski funde estas noções e inverte o jogo semântico. Ao entrar, o visitante senta numa cadeira cercada por ventiladores. À sua frente, uma câmera e uma tela. Ele vê a si mesmo nesta tela. Os ventiladores começam a funcionar e, ao sentir o vento na pele, o visitante percebe sua imagem na tela desaparecendo. “Simples” assim: seu rosto some como poeira no vento.
A discussão artística promovida por Ski começa na tradição da pintura de autorretrato e chega (mas não estaciona) na arte tecnológica embasada na programação. Ele usa a tecnologia para falar sobre o impacto da tecnologia. E nessa lógica metalinguística, percebemos a fragilidade da autoimagem e a imaterialidade das imagens em geral.
Falando especificamente de arte e tecnologia, “Freeing images in dust” (“Fragmentos”) abrange três conceitos fundamentais de um modo não-óbvio e muito sensível: interatividade, responsividade e multisensorialidade.
Ao contrário do que vemos muito por aí, o artista não reduz a noção de interatividade a um dispositivo ou situação que os visitantes podem manipular/acionar e, na sequência, constatar a resposta/reação da máquina. A interatividade, neste caso, se dá ao contrário: é o visitante que é tocado. Ao sentir o vento encostar na pele, nossa percepção de nós mesmos é modificada a partir daquilo que vemos desaparecer na tela. A dimensão tátil da instalação associada a uma espécie de telepresença, seduz os sentidos. Assim, seu caráter multissensorial é mais que uma experiência física, é o sentimento de que o fake é o “novo real”.
A proposta imersiva de “Freeing images in dust” (“Fragmentos”) é tão sofisticada que beira a transparência (apesar de todos os objetos que compõem a instalação): entre as implicações conceituais e as implementações práticas do trabalho, continuamos fascinados com a nossa própria imagem. Esta constatação da obsessão com a própria imagem é uma “porrada na cara”. Mas uma porrada que é sentida como uma brisa leve.
Mais que uma crítica à superficialidade das relações humanas na era digital e à imposição dos paradigmas de beleza e aceitação, autoafirmação e pertencimento, a instalação é uma rede de processos que evidencia o fenômeno da desmaterialização da arte. Quando usada de maneira radical, ou seja, como um gesto conceitual que levanta questões sobre a vida contemporânea, a programação e as outras tecnologias, tornam possível que os artistas questionem as definições tradicionais da arte.
Ski trabalha com as ferramentas de seu tempo, fundindo procedimentos do visível e do invisível. Ao falar da onipresença das selfies, ele fala de ausências. Somos, de fato, alguém ou somos alguma imagem? A resposta pouco importa. Porque, como qualquer imagem, em algum momento também seremos apagados/esquecidos. Selfie e arte contemporânea dialogam nas bases da banalidade da e efemeridade. Com efeito, o fenômeno das selfies reposiciona a discussão sobre o modo como as interfaces intricadas das artes, indivíduos e comunidades se completam frente à tecnologia.
É um movimento arriscado, porém, não de todo equivocado, aproximar a proposição artístico-conceitual de Rafael às noções do cyberpunk: seria a invisibilidade nossa melhor chance de liberdade? Desfazer/descontruir/apagar seria a forma mais radical de resistência?
As implicações socioculturais (e, inclusive, políticas) da nova cultura digital, que têm na Internet um dos seus principais vetores, constituem um campo infinito de exploração artística. É exatamente aí que Rafael atua, produzindo uma experiência ético-estética, cognitiva e catártica. Entre exposição e exibicionismo, existe uma complexidade psicossocial que é explorada pelo artista através do “exercício do ver”, revelando espectros da subjetividade, identidade, representação e da busca por distinção social. Revela, inclusive, uma posição irônica do próprio artista: quem é autor de “Freeing images in dust”? Afinal, sem expectadores não existe nada ali além de uma tela em branco.
Em tempos em que as pessoas tentam tirar selfies em galerias e destroem obras de arte e também em que artistas estipulam um tempo máximo para que os visitantes tirem selfies em suas instalações, Ski aposta nos usos afirmativos dos dispositivos sociotécnicos, incluindo em sua proposta artística desde dimensões lúdico-recreativas até preocupações netativistas.
Mohsen Gallery.
Tehran | Iran.
2016
oAndarDeBaixo.
Juiz de Fora | Brasil.
2016
Media Lab Prado.
Madrid | Spain.
2016
Alserkal Avenue.
Dubai | UAE.
2022